Wednesday, May 28, 2008

SÃO PAULO DA GAROA

Quando cheguei do interior, ainda jovem, vindo de Assis para fazer cursinho e faculdade em São Paulo, ainda não tinha total dimensão do que era viver nesta cidade. Minha infância inteira tinha sonhado com a chance de morar aqui na cidade grande. As férias de julho e de verão, a gente passava aqui na casa de meus avós maternos. Até hoje não me sai da memória a triste imagem da chegada a Assis quando eu acordava da viagem e via as luzes da avenida principal iluminando o trem. Era retorno ao chão, vindo do céu, que era o sonho. Aquela vida de cidade pequena me entristecia, me deixava cabisbaixo, me dava vontade de sair. Me lembro de quantas e quantas vezes eu contava nos dedos os dias para se chegar o dia da viagem de trem. Naquela época, a gente ainda viajava de trem, nos trilhos da velha e saudosa Sorocabana, que nos trazia até a inesquecível Estação Júlio Prestes. Naquelas plataformas o gostoso era sempre chegar, nunca partir. Nas noites de vinda, nem dormir direito eu conseguia, olhava em meu reloginho de pulso de hora em hora. Tinha uma luzinha fraca que ficava bem em cima da cabeça e que, toda vez que eu acendia, minha mãe, zelosa, na cama de baixo, perguntava se eu queria alguma coisa. Era uma cabine do carro leito, como eles o chamavam, na bilheteria, e tinha um beliche. Em baixo dormia minha mãe, em cima , eu e minha irmã mais nova. Às vezes, dormia sozinho, era a glória, a independência. Mas na maioria das vezes tinha que dividir o espaço com minha irmazinha. A viagem era gostosa, tranqüila, o chacoalhar dos trem embalava o sono que volta e meia era interrompido pela ansiedade de chegar. O barulho doas rodas sobre os trilhos, Ah, esse, só quem já viveu é que sabe! Dava uma sensação de segurança e a certeza de que a gente ia chegar. E ainda na periferia, algumas estações antes da Júlio Prestes, lá ia eu no meu maior gesto de independência para a varanda do vagão, ver sozinho a grande cidade chegar. Era um encontro mágico, um contorno de céu que eu não conhecia em Assis, e que toda vez que eu via me dava vontade de abraçar. O vento que soprava no meu rosto me preparava para o encontro que eu tanto tinha esperado. E lá de longe, assim que o trem embicava na estação, lá estavam meus avós acenando com o gosto de felicidade na palma das mãos. Era como se nada existisse, apenas aquele abraço, aquele beijo ,pudessem acontecer. Nos braços de meu avó , o encontro tão esperado. A cidade, o mundo, a vida , eram pequenos demais para mim naquele momento. A segurança era tão grande que a cidade ficava pequena. E eu a dominava por inteiro. No caminho para a casa dos meus avós, eu via a cidade passar na janela do carro de meu avô e sentia um desejo de pegar em minhas mãos aquela cidade que eu tanto amava.

Muita coisa mudou em São Paulo desde aquele tempo, mas minha vontade de domar esta cidade continua a mesma., Agora não é só a chegada pelos trilhos do trem e o caminho para a casa de meus avós que eu conheço. Trabalhando como vendedor, já rodei pelos quatro cantos desta grande incógnita, que eu tanto amo. Quando era criança, São Paulo era só poesia, televisão, estórias de meu avô. Eu não sabia e não conhecia este lado frio, cruel e impessoal da grande cidade. Meu avô me levava ao centro, me mostrava as ruas por que andara na infância, simulava o barulho do bonde e o trocador pedindo os bilhetes. São Paulo para mim era a São Paulo do meu avô, uma cidade pequena e romântica com seus lampiões de gás.

Hoje, depois de mais da metade de minha vida, já passada nesta terra que eu ainda amo, me ressinto ao me pegar várias vezes querendo sair daqui. Ao contrário de quando era criança, hoje conto no calendário do computador, os dias para o feriado que vai me levar até Assis. Me sinto oprimido, massacrado, pressionado por esta São Paulo que não mais reconheço. As luzes da mesma Avenida Rui Barbosa em Assis, são agora motivo de alívio e de segurança, não mais de angústia.

Felizmente, enquanto estiver aqui em São Paulo, morando no bairro da Aclimação, eu tenho um refúgio: o Parque da Aclimação. O lugar onde me encontro com minhas raízes, o lugar onde volto a ser menino e a vida passa a ter novamente sentido. Final de semana que eu fico em São Paulo e não vou ao parque da Aclimação, não é final de semana. Hoje eu preciso deste espaço, deste jardim que virou parque numa cidade onde o verde foi devastado.

No Parque da Aclimação, os velhinhos ainda jogam dominó e se reúnem para falar dos seus tempos de futebol e zona (do meretrício). Ali, as pessoas se encontram e se conhecem, se cumprimentam e se respeitam, não são impessoais e frias. No Parque da Aclimação, o futebol ainda é pelada e é jogado como mesmo amor que o velho Garrincha tinha por ele. Sem interesse, com ginga, com malícia e malandragem. O futebol é futebol, e a torcida senta junto na arquibancada e xinga o juiz do mesmo jeito. Ali não tem briga e, se tiver, faz parte, logo, logo, chega a turma do deixa disso. A mulherada também fala palavrão e se senta ao lado do marido da outra para xingar o próprio marido que está no campo. A grama não é mais grama, é terra, mas é ali que os bairros de São Paulo ainda se enfrentam com suas agremiações amadoras. È ali que o esporte bretão encontra sua identidade mulata. No Parque da Aclimação, tem o recanto do Saci Pererê, um parquinho de crianças onde todo mundo se junta para ver as crianças rolarem na areia e se divertirem inocentemente. No Parque da Aclimação, os japoneses ainda falam japonês, os coreanos ainda falam coreano e os italianos ainda falam italiano. No Parque da Aclimação, os territórios ainda existem e são respeitados, as pessoas ainda têm origem e as famílias ainda se conhecem. Na concha acústica quem se apresenta é do bairro e pode fazer ali sua propaganda gratuita para aqueles que são da comunidade. Aliás, na concha acústica, as crianças brincam e se divertem ensaiando passos artísticos para o futuro. No parque da Aclimação, não tem diferença. O velhinho da cadeira de rodas está na mesma pista da criança que dá bom dia e passa correndo. Quem corre com tênis AIR último modelo passa no mesmo lugar daquele que corre descalço ou de havaianas. Ninguém se preocupa em mostrar algo para o outro, não tem competição de grife ou status de competição. Ali o esporte é esporte e cada um faz o que gosta do jeito que quiser. As pessoas se conhecem e se reúnem, falam mais abertamente sobre suas vidas e acabam se desmascarando. Trocam idéias e até discutem, mas sem brigar. Discordam e ao mesmo mesmo se entendem. São amigas.

No Parque da Aclimação A SÃO PAULO DA GAROA do meu avô volta pra minhas mãos.

SP, 26/07/2004

3 comments:

Edison Waetge Jr said...

Lindo texto, Fê. Também tenho ótimas recordações da viagem de trem a Assis. Que pena que sucatearam tudo..

Fernando Lessa said...

Obrigado, Jr.

Aquela estação de trem está lá em ASSIS jogada. Pena mesmo. A viagem de trem é a mais romântica de todas.

Marília said...

Fê, você me fez viajar nesse trem agora mesmo. Essa sensação boa era comum às crianças e aos adultos. O TELÉM-TELÉM TELÉM-TELÉM e o balançar do vagão me voltaram intactos à memória e aos sentidos!
Parabéns pela sua escrita sensível e competente.